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A VIOLÊNCIA TEM TRATAMENTO?
Antes de tudo, sempre leio que as pessoas falam da tão propagada violência deste filme e muitos, tenho certeza, sequer assistiram-no. Ora, hoje em dia com os filmes ultra-violentos, muitos a base de torturas, falar da violência de Laranja Mecânica virou um negócio fora de moda, a meu ver.
Na verdade acho hipocrisia ficar falando da violência de um filme do passado quando muitos dos filmes atuais, que fazem a cabeça da moçada, são de uma violência tal que chegam a dar náuseas na gente.
Porém, é sobre o clássico-cult de Kubrick que escrevo e então, deter-me-ei, um pouco, sobre a tão propalada violência do filme.
Não estou aqui para negar a violência do filme, de maneira alguma. É lógico que tem violência, afinal o argumento do filme é justamente qual o tratamento adequado contra a violência.
No entanto, o filme do mestre Kubrick não é a violência pela violência, mas a discussão, em forma cinematográfica, de como deve ou não deve ser o tratamento que o Estado deveria dar ao marginal, para que este tenha condições de retornar a sociedade sem a mácula da violência e seja um cidadão útil ao meio em que vive.
Porém, antes de falar deste tratamento, falemos um pouco do perfil de Alex, o protagonista do filme.
Primeiro, a época da história do filme: uma hipotética sociedade do século XXI (parece que é a nossa época atual, não é?), na qual as leis parecem não funcionar e o governo busca novas formas de reintegrar o homem mau à sociedade, tornando-o bom.
Alex pertence a um grupo de jovens, mas quanto a isso, nada de anormal. Na época da realização do filme era comum existirem os mais variados tipos de grupos, mas isto, necessariamente, não significava que seriam grupos violentos, gangues, no seu sentido literal.
Alex pertence a um grupo de jovens, mas quanto a isso, nada de anormal. Na época da realização do filme era comum existirem os mais variados tipos de grupos, mas isto, necessariamente, não significava que seriam grupos violentos, gangues, no seu sentido literal.
Porém a gangue de Alex era violenta. Alex era um jovem aparentemente normal que ouvia Beethoven e tomava leite, ao invés de bebida alcoólica, que andava vestido de branco, ao invés de andar de preto como seria normal num grupo que quer intimidar os outros.
Na verdade, o que se discute no filme, não é que a violência seja produto de algo estilizado, mas seria um mal proveniente do próprio ser humano. E a discussão não é, de maneira alguma, ultrapassada: aliás, aqui em nossa sociedade brasileira, temos casos de jovens, aparentemente “de bem”, filhos de boa família, estudantes, sem o peso da pobreza e da chamada violência das favelas, por exemplo; que mesmo assim, atearam fogo num mendigo, que espancaram uma doméstica, etc.
Então a tal violência do filme do mestre Kubrick é atual e existe em nosso meio. Não estou falando da violência proveniente da marginalidade, do tráfico, por exemplo; estou falando da violência de jovens que nunca alguém esperaria que fossem violentos, mas que, no entanto, matam os próprios pais, entram num cinema e metralham toda a platéia, etc.
Deste tipo de jovem que tem aqui na nossa sociedade brasileira é que o filme trata. E Alex é o típico exemplo deste jovem de bem e que, no entanto, é capaz de agredir um mendigo na rua e invadir uma casa e estuprar e matar.
A genialidade de Kubrick tem um peso que é difícil deixar de levar em conta. A questão do leite, por exemplo: Kubrick mostrou que jovens não precisam se vestir necessariamente de preto, consumir álcool e drogas e nem escutar músicas violentas, para cometerem atos marginais. Os rapazes ouviam Beethoven, se vestiam de branco e bebiam leite. Queria dizer com isto que a ‘fúria-jovem” simplesmente vem da inconseqüência dos seus atos.
A “máscara” plástica e social utilizada por Alex e seus companheiros quando saíam de casa à noite, era como se assumissem uma outra personalidade que não é a familiar, que não é aquela que os pais estão acostumados a ver. Uma metáfora, sem dúvidas.
Quanto ao tratamento, que é o argumento, ao lado da própria violência, o principal do filme; é por si só, tão polêmico e perigoso quanto a própria violência. E isto é tão verdadeiro quanto polêmico é todo o processo.
Ora, Alex recebeu um tratamento de choque que condicionou seus impulsos agressivos, fazendo-o “mudar” de comportamento. Para tanto, utilizaram de mecanismos técnicos e psicológicos na indução do seu comportamento. Preso por uma camisa de forças, fios ligados a seu corpo, duas pinças mantinham seus olhos sempre abertos e sob o efeito de substâncias químicas, Alex assistia repetidas vezes cenas de violência, inclusive cenas dos atos nazistas, ao som da Nona Sinfonia de Beethoven.
Com o passar do tempo, parece que o tratamento tem o seu efeito. Alex se torna dócil e se interessa por leituras e acaba sendo muito assíduo da biblioteca, e os seus educadores chegaram a conclusão que ele estava curado. No entanto, Alex, no seu íntimo, permanece o mesmo de outrora, quando saía às ruas mascarado, acompanhado de seus “drugues” (bando de vândalos), assaltando, espancando, estuprando e matando pessoas.
Um religioso que acompanha Alex na prisão polemiza: “A questão é se essa técnica (o tratamento) realmente torna bom um homem. A bondade vem do íntimo. A bondade é uma escolha”.
Aqui nós vemos, de certa forma, o diretor acenando para a solução da questão. O filme levanta uma discussão, sem dúvidas, sobre os tipos de tratamento que os detentos, principalmente os jovens (aqui a nossa famosa e famigerada FEBEM) recebiam na prisão. Parece que neste ponto o filme diz que nada daquilo adiantava, o que faz um homem bom é “plantar nele o amor” (por isso a imagem do religioso) e esperar que ele faça a escolha certa.
Porém, não é intenção do filme, muito menos a minha, afirmar que a questão se resolverá simplesmente colocando a religião na cabeça do problema. Isto seria utopia. O problema é mais complexo. A religião ajuda, assim como todo seguimento que tiver boa intenção poderá ajudar, mas é a sociedade como um todo que terá que se responsabilizar, tendo por cabeça o Estado.
Para finalizar (a questão do tratamento), quero deixar claro, que o filme não discute qual o tratamento que o Estado deve dar ao marginal comum, aquele do submundo, do crime organizado (esta é outra conversa); mas ao criminoso que provêm de um histórico bom, de uma família boa, etc. Por exemplo: quando foram presos os jovens que espancaram a doméstica no Rio, o pai de um deles disse que o seu filho não merecia ir preso com os criminosos comuns. Foi muito criticado a atitude dele. Porém, ele não deixava de ter razão. Iria resolver dar este tipo de tratamento para o seu filho? Ir preso com os outros criminosos iria tornar o filho dele bom? O filho dele era um “Alex” que discutimos no filme! Expô-lo a violência interna da prisão não iria fazer com que ele mudasse. Poderia mudar, mas era para pior. Então, o tratamento tem que ser outro, e a questão está em aberto.
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Sobre o filme em si, posso dizer que Laranja Mecãnica é o tipo do filme que deixa o fulano pensando por semanas, meses, às vezes, anos. Você consegue, de certa forma, digerir rapidamente e bater em retirada, como fazemos num fast food, mas absorver tudo o que é mostrado em 138 minutos, leva um pouco mais de tempo.
O tom é de crítica a hipocrisia generalizada que toma conta da sociedade, o mestre Kubrick, sarcástico como nunca, não permite que o nível caia e de repente estejamos frente a um drama sentimentalóide, armadilha que muitos realizadores caem aos borbotões.
O que se discute é a realidade, o retrato de uma sociedade narcisista e fascista, que utiliza de uma violência refinada e até certo ponto educadora, mas sobretudo, violenta em exagero e sarcática ao extremo.
Um grande clássico de um visionário que retratou no início da década de 70 o atual estado de loucura em que se encontra o mundo.
Hoje, estamos num tal caos desanimador que a sociedade (o Estado) representado pela polícia, está tão próxima do bandido que ambos se confundem e, às vezes, não sabemos quem é quem e qual é o papel de cada um.
Isso porque a mesma sociedade que condena a violência (falo agora do povo em geral) utiliza-a (ou incentiva) como vingança contra seus detratores. Fica claro, numa sociedade como a nossa (a brasileira) que não existe barreiras que separe e justifique, a violência praticada pelo marginal ou pela sociedade. Afinal, a elegia que se fez recentemente a um certo filme nacional que usou e abusou da violência desenfreada como punição (e não estamos falando aqui da violência psicológica do filme de Kubrick) a marginalidade, é algo assustador e preocupante.
Então, a reflexão de Laranja Mecânica torna-se mais atual do que nunca, já que a sociedade atual (inclusive no Brasil) está pronta para combater a violência com um sarcástico e estúpido retrocesso aos tempos medievais: olho por olho, dente por dente.
As fases do filme.
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Bem, aí está uma das obras-primas do grande Stanley Kubrick e que é um clássico excepcional também, e lógico, um cult que se reserva a estar entre os mais cultuados de todos os filmes da história do cinema.
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